sábado, 19 de fevereiro de 2011

Diário: Infância Parte I

Ainda consigo lembrar com perfeição de detalhes da minha infância. 
Cheiro de terra molhada, fruta de tudo quanto é jeito e gosto, fui criada no meio do mato, com planta, bicho, e muito mimo. Filha única, sabem como é.
Nasci prematura, depois disso a minha mãe não quis mais ter filhos e se dedicou totalmente a cuidar de mim. Cuidou tanto que quando entrei pra escola era uma criança totalmente lenta, não conseguia acompanhar a matéria, não conseguia nem comer sozinha, não conseguia pegar no lápis quem dirá esfriar a própria sopa.
Tenho boas lembranças até meus seis anos, meus pais eram bem humildes, minha mãe dona de casa e meu pai agricultor.
Enquanto eu era pequena afeto não faltava, meus avós moravam no mesmo quintal e era aquela festa, muito doce, e suco de maracujá. Meus avós sempre cuidaram de mim, eram como pais de verdade pra mim, de verdade.


Ainda aos seis anos de idade minha avó virou estrelinha, faleceu como dizem os adultos.


Foi totalmente inesperado pra mim, eu era uma criança numa redoma de vidro, não haviam cogitado a possibilidade dela não voltar pra casa. 
Ela faleceu em uma cirurgia do coração. Erro médico. [raiva].
Ela foi e não voltou mais, não se despediu, e eu nunca mais tomei suco de maracujá.
Era meio-dia, e todos faziam festa, a minha estrelinha foi enterrada sob o som de fogos de artifício, no dia das crianças, dia de Nossa Senhora Aparecida também, minha santa protetora a quem minha mãe fez promessa pra eu viver. 
Ela se foi e eu não me lembro da última coisa que ela me disse e nem da última expressão que fez. Não lembro do último sorriso, ou dá última palavra. Não me lembro a última vez em que a vi.
Não fui ao velório e nem ao enterro. 
Minha mãe me conta que as más línguas(urubus), incluindo parentes, ouvia-se comentários desnecessários: 


"Quero só ver a hora em que a netinha dela chegar esperneando, vai ser uma gritaria, perigoso até derrubar o caixão, judiação!" 
Aguardavam ansiosamente a minha chegada no velório, o que não aconteceu.
Semanas depois eu ainda chamava avó "involuntariamente" pela casa. Eu chamava e meu pai chorava; chorava ao me ver chamar, lembrar e chorar também.
Minha mãe mais velha tinha morrido e eu não conseguia aceitar, me adaptar, acreditar...
Até que minha mãe "de verdade" veio até mim e disse: 


" - Filha, pare de chorar, quando você chora o papai fica mais triste, ele já está triste demais, a mamãe dele morreu, entende?"


Desde então eu não chorei mais a morte da minha avó. Não na frente deles. Foi a primeira vez em que precisei fingir, minha infância acabou ali.


...


Som do Post: Chico Buarque - Luiza